Tiuré, preso e torturado nos anos
70 e 80, é o primeiro indígena que obteve a condição de anistiado no país
Do Globo, 3.12.13
Nascimento, primeiro indígena
anistiado da ditadura André Coelho /BRASÍLIA - O índio potiguar José Humberto
Costa Nascimento, conhecido como Tiuré, é o primeiro indígena que obteve a
condição de anistiado político, concedida pelo governo brasileiro. Tiuré foi
monitorado, preso, torturado nos anos 70 e 80 e pediu asilo no Canadá, onde
viveu durante 25 anos, entre 1985 e 2010. No final de novembro, a Comissão de
Anistia reconheceu a perseguição do Estado ao indígena e, além do pedido
oficial de desculpas, concedeu-lhe uma indenização, em prestação única, no
valor de R$ 61 mil.
Filho de índios, Tiuré não nasceu
numa aldeia, mas na cidade, no Rio Grande do Norte, e ingressou na Funai nos
anos 70, onde trabalhou no Departamento de Patrimônio Indígena. Inconformado
com a forma como os militares tratavam os indígenas, decidiu abandonar a
fundação e seguir para a Amazônia, para defender os interesses desses povos.
- Os militares tinham o interesse
no extermínios dos povos indígenas. Vários documentos que passaram pela minha
mão demonstravam que esse era o objetivo - disse Tiuré na segunda-feira.
Ao lado do povo paracatejê, no sul
do Pará, mobilizou os índios contra a exploração dos donos dos castanhais. Os
indígenas eram explorados por esses fazendeiros, num sistema análogo à
escravidão. Tiuré coordenou outras ações, como impedimento de construção de
estradas nas áreas indígenas e até o sequestro de uma equipe de engenheiros,
soltos algum tempo depois. Na região da Guerrilha do Araguaia, o anistiado
conviveu com os índios suruí, que mantiveram contato com os guerrilheiros e que
também foram usados pelos militares.
Visado pelos militares e
identificado como um agitador e terrorista, Tiuré deixou a região, por
recomendação dos índios, e foi para João Pessoa (PB). Bem no início dos anos
1980, ele foi preso pela Polícia Federal, ficou horas em poder dos agentes, e
contou que sofreu torturas.
- Não foi fácil, cheguei a desmaiar.
Mas senti que não queriam me matar. Me levaram para um terreno baldio, me
espancaram e me chamavam de agitador o tempo inteiro - afirmou o indígena.
A casa onde morava chegou a ser
incendiada. Como as ameaças não cessavam, Tiuré decidiu pedir asilo ao governo
do Canadá, em 1985. O seu processo para ser reconhecido como refugiado pelo
Alto Comissariado da ONU levou seis anos. Nesse período, no Canadá, ele disse
que vivia uma "meia prisão domiciliar".
- Era um lugar para refugiados, sem
muitas condições. Eu não podia estudar nem trabalhar na minha condição.
Testemunhei suicídios. Depois, com o status de refugiado, a coisa mudou.
Estudei numa universidade indígena, dei palestras e a vida melhorou.
'Pouco ou nada se fala sobre a
relação entre a ditadura e os índios'
Tiuré decidiu voltar ao Brasil após
a vitória de Dilma Rousseff para a presidência da República.
- Entendi a vitória dela como um
chamado para voltarmos ao país. Mas seu governo decepcionou na política
indigenista e há muito o que fazer.
Tiuré acredita o fato de ser o
primeiro indígena anistiado irá provocar um debate sobre esse assunto no país.
- Pouco ou nada se fala sobre a
relação entre a ditadura e os índios. Que essa decisão se estenda a centenas de
outros que também foram vítimas de muitas violações.
No primeiro semestre deste ano, a
Comissão de Anistia começou a julgar o processo de Tiuré, mas a documentação
estava incompleta. A comissão queria provas de que, mesmo não tendo nascido
numa aldeia, Tiuré poderia ser considerado um indígena. Um laudo antropológico
desfez a dúvida, a favor do índio. Ele chegou a ameçar greve de fome se sua
condição de anistiado não fosse aprovada.
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