quinta-feira, 5 de julho de 2012

Arpilleras: Fonte de resistência e sobrevivência em tempos adversos



Arpilleras: Fonte de resistência e sobrevivência em tempos adversos

Por: Rosário Amaral e Vera Vital Brasil
Junho de 2012


História e emoções vívidas estiveram expressas na arte apresentada pela exposição “As Arpilleras da Resistência Chilena”, ocorrida entre os dias 29 de maio a 05 de junho deste ano de 2012, no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Além da exposição de trabalhos têxteis, constava da programação três oficinas com mulheres para a elaboração de Arpilleras, e uma mesa redonda no dia 4.

A Arpillera é uma técnica têxtil que se origina numa tradição popular de bordadeiras da Isla Negra, região central do litoral do Chile. Em 1964 a artista plástica, cantora e folclorista Violeta Parra, importante difusora internacional desse trabalho, expôs uma série de Arpilleras no Pavilhão Marsan do Museu de Artes Decorativas do Palácio do Louvre.

Seguindo os passos de Parra, a curadora Roberta Basic tem percorrido vários países da Europa e Ásia divulgando o trabalho das Arpilleras. No Brasil a exposição, produzida por Clara Politi, com o apoio do Projeto “Marcas da Memória” da Comissão da Anistia, Ministério da Justiça, esteve também em Porto Alegre, Curitiba, Brasília e Belo Horizonte.

Essa técnica, como explica Roberta, é uma “forma de registrar a vida cotidiana das comunidades e de afirmar sua identidade; as oficinas de Arpilleras não somente representam a expressão dessa realidade como também se transformaram em fonte de sobrevivência em tempos adversos”. A adversidade que a curadora se refere advém, segundo ela, das condições socioeconômicas de seu país e do cerceamento à liberdade política gerado pelo golpe militar ocorrido no Chile, em 1973.

Uma luta pela Verdade e Justiça - “As Arpilleras mostravam o que realmente estava acontecendo nas suas vidas, constituindo expressões de tenacidade e força com que elas levavam adiante a luta pela verdade e pela justiça” afirmou Basic, acrescentando que as obras quebraram o silêncio dos problemas vividos pelos chilenos durante a violenta ditadura que se abateu nos anos 70. “Hoje, são testemunho vivo e presente, e uma contribuição à memória da história do Chile”, disse.


Arpilleras da Maré

Uma arpillera das mulheres do CRMM-CR 
Como parte da programação da exposição, três oficinas foram realizadas com mulheres de comunidades do Rio de Janeiro, dentre elas a constituída pelo grupo de 13 integrantes do Curso de Direitos Humanos do Centro de Referência de Mulheres da Maré Carminha Rosa (CRMM-CR UFRJ). Durante a visita guiada, Roberta Bacic descreveu os quadros da exposição, falando sobre o período de violência, morte, sofrimento e falta de liberdade em que foram bordados aqueles painéis de Arppilleras. Ouvindo com muita atenção, observando detalhadamente os trabalhos, algumas das mulheres indagavam sobre o que tinha havia ocorrido com o povo chileno durante a ditadura de Augusto Pinochet.

Após a visita, os trabalhos foram iniciados com três grupos de mulheres utilizando a técnica similar das Arppilleras chilenas, onde cada um deles produziria na tela o tema que quisessem representar a partir das conversas entre elas: a cidade do Rio de Janeiro, a escola, a comunidade, abordando assuntos de conflito ou de alegria.

Para as mulheres da Maré a atividade das oficinas, foi divertida, possibilitando compartilhamento coletivo, onde a liberdade de expressão e autonomia esteve em alta, além de ser um momento de reflexão sobre alguns aspectos da violência.

A mesa redonda Memória Verdade, Reparação e Justiça, realizada no dia 4 de junho, coordenada pela Professora Mariléa Porfírio, coordenadora do NEPP-DH, UFRJ, uma das instituições organizadoras do evento, contou com a participação de Roberta Bacic, Vera Vital Brasil e Carolina Campos Melo.

  
Arpilleras como instrumento de luta e elaboração do luto

Roberta Bacic, curadora da exposição, deu início ao debate: “As arpilleristas cujo testemunho compartilho nesta mesa redonda dando voz e diálogo à exposição “Arpilleras da Resistência Chilena” são mulheres que através de suas Arpilleras recolheram depoimentos, costuraram pedaços de memória, resistiram à ditadura e se posicionaram da plataforma de mulheres que buscavam seus homens e também suas mulheres desaparecidas. Em alguns casos faziam o luto da perda ou se negavam a fazê-lo. ...”

As mulheres que no trabalho de Arpilleras deram um sentido para o sofrimento que enfrentaram durante o regime ditatorial pinochetista, de 1973 a 1992, puderam recriar suas vidas deixando nas telas suas histórias singulares e seu testemunho do que ocorreu neste período. A exposição das Arpilleras da resistência ao percorrer vários países tem sido um instrumento para a ampliação do debate sobre as mais variadas situações de opressão do passado e do presente.

Roberta mencionou ainda a sua participação como membro comissionado de uma das Comissões da Verdade em seu país que, logo no início do regime constitucional, em 1991, instalou a chamada “Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação”, que investigou as mortes de cerca de 2500 pessoas durante o terrorismo de Estado, e que reconheceu publicamente, através do relatório Rettig, a responsabilidade do Estado nestes crimes. Sem apontar os autores, este amplo relatório foi apenas a “ponta de um iceberg”. Em 2004, a “Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura”, também chamada “ComissãoValech”, ampliou estas informações e investigou cerca de 35 mil casos de tortura.

Roberta relata, por experiência própria, que a natureza do trabalho do comissionado é difícil e complexa. Tomando como referência o que os familiares apresentaram em tribunais, abriram-se portas para situações variadas, como visitas a hospitais, escolas, registros civis, para examinar dados, checar informações nas chamadas fontes “não jurídicas”. Destacou, ainda, a importância da investigação do paradeiro de desaparecidos, bem como do uso intensivo da força repressiva durante o período ditatorial. Os relatórios finais apresentaram diretrizes, indicações para o Estado chileno. Como avanço no processo de construção de memória e reparação, medidas de integração de afetados foram adotadas, como, por exemplo, o reconhecimento na justiça de união de mulheres cujos companheiros foram desaparecidos; no campo da saúde a criação do programa de atenção, conhecido como PRAIS. 


“Somos testemunhas do nosso tempo!”

Diante da Comissão da Verdade, instalada ainda que tardiamente em nosso país, temos a expectativa de que seus resultados possam significar avanços no campo da Memória, Verdade e Justiça. Que a sociedade civil organizada possa cobrar, mais e mais, para que os resultados apontem as condições em que se deram as violações, seus responsáveis, e que o relatório final possa ajudar na elaboração de futuros processos que sejam levados à Justiça.” Foi o que afirmou a psicóloga Vera Vital Brasil, que realiza há mais de 20 anos um trabalho profissional que conjuga atividade clínica e política. Segundo ela “não há reparação aos danos causados à sociedade se não houver o esclarecimento do ocorrido, ou seja, a verdade, bem como a construção de memória e a justiça”.

A integrante do Coletivo RJ Memória Verdade e Justiça diz que “somos testemunhas do nosso tempo”.  Vera traz na sua trajetória as marcas de uma então estudante da faculdade de Farmácia da UFRJ, que teve a sua formação interrompida pela prisão no Brasil e exílio no Chile, no final da década de 60. É com propriedade que ela denuncia:O Estado tem sido agente de violações há muito tempo no país e continua cometendo violações. Praticou torturas, fez muitos mortos e desaparecidos no passado recente, e continua hoje cometendo estes crimes de lesa humanidade de forma sistemática e generalizada.”

A experiência no atendimento aos perseguidos, aos familiares dos mortos e desaparecidos políticos pela ditadura militar no Brasil (1964-1985), através da equipe Clínica do Grupo Tortura Nunca Mais RJ, e hoje atuando na Equipe Clínico Política, permite-lhe afirmar que os danos provocados pela tortura e violência de Estado são irreparáveis, e “se diferenciam dos danos cometidos, por exemplo, pela violência criminal ou intra-familiar porque tem caráter político”. Segundo ela, “o Estado tem que se encarregar de proteger o cidadão; deve garantir a integridade física, os direitos e a vida do cidadão”. A psicóloga foi contundente ao falar sobre a responsabilidade do Estado que tem violado suas próprias regras: “O Estado transgride sua própria norma; ele tem que ser responsabilizado por seus delitos contribuindo assim para romper com o sentimento de impunidade de agentes públicos hoje reinante no país”.

Sobre a Comissão da Verdade, que a presidenta Dilma Rousseff instituiu recentemente para esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos ocorridos no período da ditadura entre 1964-1985, disse: “A nossa expectativa é que a Comissão da Verdade faça seu trabalho de investigação, exaustivo como deve ser, tomando como base os documentos e os testemunhos. De documentos das Forças Armadas, de instituições privadas e públicas que já estão sendo apresentadas aqui no Arquivo Nacional. Porém, lembro que a ótica que se apresenta nos documentos dos militares é a dos agentes da ditadura, não é a nossa mirada, e a nossa mirada precisa ser colocada em cena. É preciso que aqueles que vivenciaram o terror de Estado dêem seus depoimentos em livros, em filmes, como muitos têm feito, mas também participem como  testemunhas na Comissão da Verdade”.

Os dois conceitos de Anistia

Dos 70 mil requerimentos que a Comissão de Anistia recebeu até 2011, 35 mil foram de pessoas que tiveram a condição de Anistiado político decretada, sendo 15 mil delas com direito a reparação econômica.  Este balanço foi apresentado pela Conselheira da Comissão de Anistia, Carolina de Campos Melo, durante o debate.

Carolina, através de uma problematização histórica e jurídica, falou da dificuldade da idéia de Anistia no Brasil, onde estão em funcionamento duas Leis: uma de 1979, a de número 6.683, cujo sentido é o de esquecimento, porque não investiga os autores dos crimes de lesa humanidade, e a outra, que constitui a Comissão de Anistia, de número 10559, de 2002, que insiste no conceito de Anistia como liberdade, reparação. Tomando como base de análise a sua tese de doutorado “Direito a Verdade”, defendida recentemente na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, argumenta sobre os dois conceitos de Anistia no Brasil. “Temos uma Anistia como esquecimento, a da Lei de 1979, Anistia pelo menos na interpretação que foi dada pelos tribunais brasileiros, mas também temos o conceito de Anistia como liberdade. Tem a Anistia requerida naquela época, no início da redemocratização no Brasil, que redundou no retorno dos exilados ao território nacional, e a Anistia que acabou ganhando o conceito de não só Anistia com liberdade, mas Anistia como Reparação”. Chamou a atenção para a importância do momento político atual, que considera como sendo “crucial” para que seja “colocado em xeque o conceito de Anistia como esquecimento”.

Destacou, ainda, a importância da manifestação de familiares de mortos e desaparecidos, das vítimas como uma tentativa valiosa no sentido de que “o impacto do esquecimento seja quebrado de alguma maneira”. Lembrou de “uma importante ação movida em 1982, pelos familiares da Guerrilha do Araguaia. Foi no contexto dessa ação que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no final de 2010, determinou a responsabilidade do Estado brasileiro pela violação aos direitos de garantia e proteção judicial de 70 guerrilheiros e em relação à investigação dos desaparecimentos e julgamento dos responsáveis.” Lembrou ainda que esta sentença foi ditada no mesmo ano em que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, movida pela Ordem dos Advogados do Brasil, para a revisão da interpretação ate então dominante da Lei de Anistia. Carolina foi enfática em considerar equivocada a posição da Corte Brasileira que validou a vigência da lei de Anistia de 1979, que “confere um manto protetor aos torturadores”.

Neste contexto atual em que a Comissão da Verdade inicia seus trabalhos, Carolina avalia ser um momento importante “para fazermos o uso de algumas bandeiras; uma delas é o conceito de Anistia, adquirido com a Constituição de 1988, que permite os trabalhos da Comissão de Anistia, levando a idéia de Anistia como liberdade, Anistia como reparação”, concluiu.


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